A calada da noite em Londrina não é tão silenciosa quanto parece
Adriana
Gallassi, Alessandra Galletto e Clara Simões
Avenida Rio de Janeiro, 20h30.
Um ambiente iluminado com uma luz
aconchegante, uma linda decoração, não bastam para fazer do bar um local
agradável. A melodia que toca ao fundo define o astral da noite. É ai que
Bethânia Paranzini, 29 anos, e Samuel Muniz, 31, entram nessa história, ou o
bar entra na história deles.
A música
faz parte da vida de Bethânia desde muito cedo. Quando ainda era criança ela já
tocava piano clássico, lá em Cianorte. Aos 17 anos, veio para Londrina, fazer o
curso de Música na Universidade Estadual de Londrina, UEL. Nessa época ela já
se interessava de alguma forma pela noite, isso porque, como o curso na UEL era
vespertino, Bethânia aproveitava para sair a noite e ver como a música estava
sendo executada nas casas de Londrina.
Bethânia
conheceu as rodas de choro e também conheceu Samuca – o Samuel Muniz – e
se envolveram, primeiro pela música, paixão em comum dos dois. Samuca veio de
São Sebastião, litoral de São Paulo, e se encantou pelo choro quando um amigo
lhe apresentou um disco, no qual Rafael Rabello , violinista e compositor
brasileiro, tocava. Quando ouviu, pensou “quero tocar assim”. Foi dessa maneira
que resolveu comprar seu primeiro disco de choro, uma coletânea do livro “Do
quintal ao municipal” de Henrique Cazes. Comprou somente por causa de
Rabello, não conhecia mais nenhum nome do disco. Até que veio a Londrina para
fazer o Festival de Música e descobriu que os professores que iriam dar aula
eram aqueles desconhecidos do disco dele. Fez uma oficina de choro e se
encantou.
Nas rodas
de choro, Samuca tocava violão e Bethânia participava cantando, mas como o
choro é essencialmente instrumental, Samuca propôs que Bethânia aprendesse a
tocar cavaco, para participar mais das rodas. Ele aprendeu a tocar cavaco para
ensiná-la. “O Samuca foi a minha âncora na música popular”, conta Bethânia.
Esse relacionamento que começou pela música, continuou com ela sendo
parte importante na vida dos dois. Eles se casaram, com direito a roda de choro
na festa. O noivo tocou, a noiva cantou, e assim foi por doze horas.
Hoje os
dois tocam juntos, mas não fazem somente isso. Samuca dá aulas de violão em
casa. Bethânia trabalha no projeto de canto coral, “Um canto em cada canto”,
com musicalização em ensino regular com educação infantil e fundamental I , e
dá aula de voz em casa. Ela afirma que eles ainda encontram tempo para tocar na
noite e para sair também.
“Eu acho
que é bacana porque todo mundo sai a noite com aquela esperança de tirar um
pouco a sobrecarga do dia”, afirma Bethânia, sobre o trabalho à noite. Ela
lembra ainda, de uma mulher que ficou a noite toda sentada perto deles e no fim
da apresentação disse-lhes, “nossa, eu estava tão estressada do trabalho,
como foi bom escutar vocês”. Para Bethânia isso é gratificante.
Samuca também gosta de tocar na noite, ele declara, “Da mais prazer tocar
na noite. Poder colocar em prática aquilo que estudamos (...) até porque quando
a gente começa na música, não começa pensando em dar aula, não, você quer
tocar. Acho que o prazer do músico é estar tocando. É o que da mais motivação”.
Mas eles
não escondem as dificuldades. “Acho que a maior dificuldade, para o tipo de som
que eu faço, está sendo as casas. Eu entendo o lado das casas também, eles
estão pensando comercialmente, eles tem que vender. Ai, já não é culpa deles
(...) É difícil ir contra a mídia”, desabafa Samuca. “Londrina é uma cidade em
que a música está muito voltada para um meio universitário, eu brinco que nós
somos um dos poucos resistentes. A gente não vai fazer o que as pessoas estão
acostumadas a ouvir. A gente faz o que a gente gosta. Trabalhar na noite, pra
mim, é levar um tipo de música que, com exceção da Rádio Universidade,
em alguns momentos, você não escuta com tanta facilidade. Então é
proporcionar a escuta de músicas que as pessoas pensem ‘pera lá, é música
brasileira, mas eu não conheço’”, explica Bethânia.
Ao
perguntar para eles o que a música significa na vida deles hoje, a resposta é
igual: tudo. “Tudo. Porque eu respiro música, eu faço música, eu penso música”,
declara Bethânia. E Samuca completa, “Atualmente, é tudo. Não tem mais como
usar outra palavra. Toda vez que tento deixar de lado, só me dano. Tem coisa
que a gente, talvez, nasce para fazer”.
Avenida Higienópolis, 3h25 da manhã
Ninguém realmente quer que aquele
telefone celular toque. Apesar de ser sua profissão, apesar de que se ele nunca
tocar não haverá trabalho, ninguém quer. Apenas a primeira ligação é comum: os
paramédicos, médicos e enfermeiros que chegam para o turno da noite em torno
das sete horas recebem o telefonema para verificar quem está de plantão, e se
todos já estão disponiveis. A partir daí vem a espera. Distrai-se para que o
tempo passe mais rápido, televisão ligada em uma sala de estar simples e
grande. Café, jantar, livros, computadores. Hora ou outra olha-se para o
celular de transmissão à rádio e imagina-se aquele som estridente, que
geralmente leva a outros sons ainda mais estridentes.
Luis Carlos de Melo, mais conhecido por
Carlinhos, é motorista de ambulância e socorrista há 19 anos, e trabalha na SOS
Unimed e na prefeitura de Cambé há 6 anos. É casado há 15, tem dois filhos e um
neto. Em seis dos sete dias da semana, ele trabalha em plantões em postos de
emergência, em dois turnos de doze horas, com apenas uma hora de tempo livre,
que geralmente usa para ir de Londrina a Cambé. “Nunca saberia como é uma
rotina normal, trabalhar num escritório e voltar para casa no fim da tarde.
Minha vida é à noite”.
Numa jornada de trabalho tão
extenuante, Luis Carlos dedica suas 24 horas de folga à família. O stress
provocado pelo trabalho não consegue abatê-lo. “Sou apaixonado pelo que faço.
Tenho outra ocupação, sou marceneiro, mas gosto demais do que eu faço. Primeiro,
dirigir. Segundo, dirigir a ambulância. Quando estou nela, a sirene ligada na
cidade, indo resgatar alguém, eu me realizo”. “Todo o stress que tenho no
serviço é compensado quando chego em casa e pego meus filhos no colo, apesar de
agora pegar só o neto, meus filhos já são grandes demais”, acrescenta entre
risos.
O telefone de emergências enfim toca.
Breves informações são dadas à equipe de socorro; uma mulher liga em desespero
dizendo que sua vizinha brigou com o namorado e ateou fogo a seu próprio filho,
ainda no carrinho. “Eu ia todos os dias no HU para ver o acompanhamento da
criança. Foi um dos acidentes que mais me chocou. Mais de 90% do corpo do bebê
foi queimado. Em dois ou três dias foi necessário amputar um de seus braços. No
quarto dia, uma das pernas. Ficou internado em torno de uma semana e não
resistiu”. Carlos trancou a mãe da criança dentro da ambulância e deixou a
mulher trancada em uma sala no hospital até que a polícia chamada para levá-la.
Há cerca de um ano e meio, o socorrista
salvou a vida de um jovem baleado em um acidente. Em Cambé dois jovens
discutiram durante uma festa de fim de semana. Um deles estava armado. No
momento em que ele tirou a arma do bolso, a arma disparou sozinha, e o tiro
feriu sua artéria carótida. Na época, a Santa Casa de Cambé não possuía UTI, e
o jovem foi encaminhado até a Santa Casa de Londrina. “Carlinhos, se demorar
mais quinze minutos para chegar, ele vai morrer”, disse o enfermeiro que
acompanhava Carlos na ambulância naquela noite. O socorrista conseguiu salvar
sua vida.
Há poucos meses Carlinhos saiu com a
família e os amigos para aproveitar um fim de semana jogando futebol. O mesmo
jovem de tempos atrás estava lá. Jogaram juntos, mas ele não reconheceu o homem
que o havia salvado. Depois da partida, Carlos conversou com o jovem, que
agradeceu e se emocionou ao descobrir quem ele era. “Salvar, eu não salvei ele;
Deus foi quem me pôs ali para estar onde ele estava. (...) O pessoal abusa
muito da bebida nestas festas e bares, faz tudo ficar muito perigoso”.
“Todo mundo trabalha porque precisa,
mas eu acho que para trabalhar na área da saúde precisamos ter algo a mais. A
vida de uma pessoa depende das nossas escolhas; um medicamento, uma dosagem
errada pode matar alguém. Em um computador, uma pessoa comete um erro, apaga,
deleta; em um escritório, se algo está errado, amassa o papel e imprime outro.
Aqui nossos erros podem ser fatais”.
Rua Alagoas, 4h00 da manhã
Enquanto a cidade dorme, Antônio
Camargo Vieria e sua mulher, Vera Camargo Vieira, trabalham para garantir o pão
de cada dia. O café da manhã é ainda na madrugada e a montagem da barraca é uma
tarefa executada com capricho e ordem com cada legume, verdura e fruta em seu
lugar. Ainda no silêncio da madrugada, eles ajeitam daqui, arrumam dali,
deixando tudo no seu canto certo antes do dia amanhecer. O encontro entre a
singela vida no campo com o mundo movimentado da cidade mostra seus contornos
enquanto o dia ainda nem raiou. Assim acontece toda semana na vida de seu
Antônio e dona Vera, um casal com mais de 30 anos de matrimônio e
representantes da simplicidade e do amor ao trabalho. Unidos de muita simpatia
e boa vontade são uma amostra dos legítimos trabalhadores brasileiros. Campeões
premiados pela prestação de serviço e responsabilidade com os alimentos na
horticultura.
Para entender esse conjunto de elogios
só mesmo conhecendo essa história de sucesso contada pelos seus protagonistas.
Antônio teve a profissão herdada de seus pais. Desde de pequeno, ele ajudava
seu pai a plantar e colher as frutas e verduras. “Eu era praticamente um pivete
e eu, meus irmãos e meus pais fomos trabalhar num plantio de horticultura
porque a minha família tinha bastante dificuldade financeira.” Ele fala da
grande emoção que tinha de poder trabalhar ao lado de seus pais. “Eles tinham
amor pelo que faziam e me passaram esse amor. Sempre gostei de trabalhar aqui e
era melhor ainda quando eu podia trabalhar ao lado de meus pais”. Além da luta
para conseguir espaço no mercado, a vida também reservava outras surpresas para
seu Antônio, além de alfaces e brócolis. “Eu e Vera nos conhecemos numa
quermesse. E eu apostei com um senhor que eu iria namorar ela. E, assim foi.
Namoramos durante três anos e depois nos casamos”.
O esforço, a responsabilidade e o comprometimento geraram reconhecimento. A
história de vida do casal é uma demonstração do amor ao trabalho e compromisso
com o meio ambiente e a saúde dos fregueses. A vida de feirante não é fácil.
Para tanto sucesso é preciso trabalhar, trabalhar e trabalhar. “Eu gosto muito
disso aqui, tanto que eu já parti para outros ramos, mas eu não consegui ficar
não”, comenta dona Vera. Apesar de ser uma vida bastante sacrificada – acordar
em plena madrugada e ainda ter que preparar a mercadoria, depois de uma noite
exaustiva de trabalho – o casal garante gostar bastante do que faz. E
consideram-se bons no que fazem! Segundo Antônio, o segredo é a simpatia e a
educação na hora de conversar com os clientes. “Tem que ser muito simpático e
educado. Já vi vendedores com bons produtos que não vendem bem porque não sabem
atender os clientes”, diz ele. Antônio acredita que um bom produto pode até ser
vendido uma vez, mas, se o cliente não for bem atendido, irá procurar outra
barraca na segunda oportunidade. Além disso, há um tratamento diferenciado para
os fregueses mais fiéis. "Tem freguês que já virou amigo. Até ligam antes,
pedindo pra gente separar mercadoria. Fora os descontos que têm que ter, até
pra atrair cliente novo". Antônio deixou bem claro toda a paixão que tem
pelo emprego. “É um trabalho que engrandece (...) feirante gosta de ser
feirante", comenta.
Apesar da vida sacrificada, Antônio não
se imagina em outra profissão, pois ama o que faz: “Meus clientes são as coisas
mais importantes para mim depois da minha família”. O feirante fala muito do
carinho sobre as amizades nascidas em seu ambiente de trabalho, afirmando que
as feiras são especiais porque é o tipo de comércio onde o vendedor e o
consumidor possuem um grande vínculo de amizade. Depois de um dia de tanto
trabalho é hora de voltar para casa, mas engana-se quem pensa que o trabalho
acaba aqui. Logo inicia-se o ciclo novamente. Seu Antônio e Dona Vera terminam
essa feira, mas ainda têm simpatia de sobra, mais para dar do que para vender.